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Nesse dia





Melodia indecisa, frases a correrem o ecrã, e as divagações de um velho.
Toca agora a música que já ouvi muito, a música que ouvi no desabar do mundo.

Quando era pequeno, saía da carrinha do infantário para vir encontrar o meu irmão na rua. Lembro-me de um Verão em que isso aconteceu. Lembro-me como se fosse hoje. Eu saí e fomos para casa brincar ao mundo encantado.
Tínhamos regras nossas. Daquelas que mudam quando convém. Imaginávamos tudo: as falas, o herói de cada um, a história de todos… De uma placa de madeira fazíamos uma espada. Uma bacia com água congelada era um tesouro. Ainda me lembro da cor, era uma bacia vermelha em plástico.

Hoje as brincadeiras acabaram. Já só falamos em códigos de adultos. Rimos com as piadas pouco inocentes, falamos em casa pelo MSN e evitamos as pontas soltas.
   (detestava, e detesto, as pontas soltas no ponto de cruz. tinha-se, e tem-se, de fazer um nó no fim. detesto rematar as coisas).
Tornamo-nos companheiros de silêncios onde não há perguntas. Hoje, esquecemos a bacia vermelha e ficamos a falar de rendas e prédios, de carros e cartas, de contas e empresas. Em vez dos desenhos veio a política, as músicas diferentes, o trabalho  ou o estudo.

Talvez um dia o mundo desabe de novo e eu tenha de ir ao parque falar outra vez. Ou ir ao shoping, num dia de calor, dizer o impossível. Nesse dia vamos falar da espada e das tardes no tanque. Vamos falar do ponto de cruz (sem pontas), das idas às casas dos outros reinar em castelos nossos.
Só espero que esse dia venha antes que nos caiam os cabelos. Antes que os laços se desatem e a memória se esqueça que fomos assim, cheios de sonhos.

Espero por esse dia.
Agora, vou voltar à melodia ... às letras no ecrã ... aos cabelos que já me caiem.

PS: Sobre o velho não falei. Foi de propósito! Para esse já não vai haver dias que sobrem para voltar atrás.
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