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Quatro números




Faz a cama, arruma o quarto, pega na vida e sai. É tempo de ires ver a velhinha da rua, a gorda que vende castanhas e o mendigo que encaderna cartões.
E a vida é isto. Um cartão de plástico, verde, roxo, azul, laranja... Quatro dígitos e pronto. Pronto a casa. Pronto as férias. Pronto o carro e as aulas dos miúdos que vão lindos de fatinho para lá.
Só não chegam quatro números para guardar o sol em mim e manter no corpo o cheiro das pessoas alegres.

A função f vai de mais infinito a menos infinito e esses são os números reais.
Quatro números num canto de uma rua. Será que hoje vou ser feliz? A mãe estará melhor? Como vai acabar a novela da noite? Olha que coisa mais gira ali!
E depois quatro números na loja, no relógio da amiga. Quatro mais cinco, que dá nove, no telemóvel dele. Quatro números enquanto falamos e discutimos, só não dizemos que queremos estar juntos. E a televisão que fala em mais números: é o governo, a oposição, as falências, os desempregados, os pedintes e os prémios cheios dos números dos ricos.

Um dia vi castanheiros que davam castanhas. Ainda não existia mulher gorda, nem a dos guarda-chuvas.
  (a chuva não se guarda, entra-nos. palavra parva essa. só podia ser justaposta. a chuva entra e sai. nós é que mudamos)
Os castanheiros davam folhas e ouriços. Subíamos às árvores no fim da catequese
   (o Jesus não deixava mas nós íamos. se calhar foi assim que o Saramago ganhou ódio a Deus, nunca subiu a um castanheiro depois da catequese)
e não pensávamos em números. Íamos aos plátanos e tirávamos as folhas, lá para Outubro, e fazíamos daquilo uma brincadeira. Eram folhas cheias de riscos que traçávamos por cima às cores.
Que importava que a folha fosse castanha, o céu azul e os grandes tivessem cheios de números?

Depois veio a escola. O fatinho, as caligrafias certas com a caneta azul,
   (o vermelho era falta de educação)
os cubos, as histórias escritas na língua dos grandes. Quando foi que deixamos de ser todos amigos no recreio e ficamos conhecidos de "Olá" a correr na rua?

Bem, faz a cama que isso é ser educado. A tua mãe ri alegre porque cresceste. Mas , coitada, também sofre. Ela sabe: os números vão tomar conta de ti!
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