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Chuveiro pensante




O chuveiro deita pingos de outros tempos. Caiem como gotas de suor dum corpo de memórias. Batem-me na pele como areia pegajosa numa praia de Inverno. Um praia cheia de melancolia como aquelas descrevidas nos livros sentimentais.
São momentos sem tempo, horas sem relógio, dias fora dos calendários
   (dia tal vais ali. ali é o dia certo, na hora exacta. mania de quererem privilégios de voltar atrás!)
onde a vida pára num terreno amplo, parado, sem chuva ou vento de oeste que traz o sol. Não sei porque os tenho, ou melhor, porque se dignam a aparecer no roliço das caminhadas rápidas de cada manhã, tarde, noite e madrugada.
   (círculo faz o tempo.
    circulo de gente que entra em sala sem cantos.
    roda de bicicleta andante no redondo.
    até ao dia dos prantos.)
Enchendo espaços, tornando a vidinha desequilibrada. A balança fica a pender mais para flashes de horas cheias ou vazias de sentido. É o que faz esta mania de trazer às costas coisas imensas  e cheias de mim, de outros e de árvores no Outono tão nuas no Inverno.

Só sei que nunca esqueço. São regos de lavrador cravados na alma. Regos preenchidos com plantas da época, irrigadas com as minhas lágrimas e as gotas do chuveiro. Sol a sol, as marcas ficam fundas e fundas. Faz-se um poço de onde tiramos manias e palavras respondonas ao touro desafiador.
Daqui a dez anos, estarei por cá? Haverá notas minhas por aí a encher nuvens de vapor quente saídas de uma água de chuveiro?

O Palma diz que há um lado errado da noite. O Eça fala de falhas, decadências, caminhos de cortesia patética. Mahler põe tudo, explica-se em tudo e faz tudo cair num medo presente de morrer. Tenho que ler um texto de Sophia. Sentir a cor do mundo dela ou a pureza do Torga falador do campo e da labuta do povo.
Há sempre as gaivotas do António mais as pombas, as galinhas e a vida de sermos um mundo tão grande como Pessoa foi. Falta-nos é garra e muitas gotas de chuveiro. Fecho os olhos e vejo um concerto de Mozart, tudo tão direito e certo. Faz-me sonhar com ideias vencedoras e vitórias em campos de Tróia.
Abro os olhos às gotas de água quente. O liquido adormece-me o sangue e tapa o som dos meus ouvidos. Sonho com Beethoven surdo a construir o império do som. Sinto as milagres baterem nos azulejos baratos e imagino um piano tocando Chopin.
O Alegre tem uma frase muito eloquente. É mais um texto do que uma frase. Fala sobre o passar das coisas e do ficar cravado na alma. Não são precisas magias ou espectáculos de santo milagreiro. A chuva vai bater sempre nos vidros. O  Natal virá, com pessoas ou sem elas. Teremos metros, carros, autocarros e números a correr na televisão.
Mas o novo será um fado cantado pela Mariza, ou uma letra do Tê ouvida em horas longas. O novo é sentir o poço sem fim dentro de mim. O novo é recordar, cada manhã no chuveiro, as memórias de ontem, cheias de amanhã. Porque elas vão cá estar enquanto eu tiver de ser um homem num chuveiro pensante.

PS. Ouçam isto quando lerem (se lerem) estas passagens pela segunda vez.

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