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Crónicas da pena III



Na esquina de nossa casa colocaram um marco do correio. Se queres que te diga acho plenamente desadequado! Já ninguém manda cartas, nem postais ou sentimentalismos em papel. Como disse ontem a um amigo, não passa de dinheiros do Estado ao desbarato. 
O país está mais pobre, tivemos um Inverno duro e as consultas de rotina no hospital correm bem. A doutora disse que estou a evoluir positivamente e, caso tudo ande nestes planos, o acidente que nos juntou, amor, deve deixar de existir.
Se queres que te diga não estou feliz. Passaram quatro anos desde o encontro ingrato em que me reclamaste a vida e fizeste parar o tempo. Na altura pensei que morreria e se tivesse ido até nem teria sido mau. Depois vieste tu, os pelos caídos, os vómitos, a vontade aflitiva de que a dor parasse. Em compasso disto uns beijos teus, os planos, as saídas para o parque da cidade onde me davas a mão e rezavas em silêncio com os olhos. 
Querias tempo para nós ...
Querias domingos de manhã pachorrentos, onde trocaríamos beijos repetidos em forma de ritual ...
Querias um amor na pele, nos olhos e na boca...
Eu não passava dum cadáver de gente. Ao acordar elaborava um ar soturno e persistentemente doentio. Encostava-me aos cantos contemplando a chuva ininterrupta de Dezembro. Choveu tanto naquele Inverno! Tu tomavas a minha mãe e dizias um bom dia leve e suave. Adivinhavas os enjoos e trazias uma medicação que controlavas como as velhas controlam meticulosamente as novenas. Punhas uma bola branca na minha mão e eu, obedientemente, engolia. E amava-te assim, entre narcóticos e pingos eternos de chuva.
Hás quintas das semanas pares do mês lá me levavas as sessões de veneno. Ligavam-me os canos e os tubos às veias e tu rias as parvoíces sexuais das revistas cor-de-rosa que povoam a mente das donas de casas frustradas.  Eu ria num sorriso abafado e dolente. Era tudo tão arrastado! Os outros envenenados, as dores, as tuas mãos sobre o meu queixo enquanto o mundo caía na sanita. As tuas piadas e planos eternos, onde eu e tu perdíamos o tempo em restaurantes exóticos e monumentos altamente culturais. 
Nunca choraste! Talvez até tenhas chorado ... acredito que sim. Eu nunca vi. Eras tão forte ...  
Reduziste as horas no hospital e à noite voltavas. Perguntavas pela cesta, pelas aflições e pelo barulho dos vizinhos recém-casados que faziam tremer a cama como o terramoto de Lisboa fez cair as igrejas. Eu ria contigo e acompanhava-te no serão. Davas-me a mão e eu queria-te tanto! Dava-te beijos e adormecia nos teus braços. Talvez chorasses quando me vias dormir. Não sei ...
Sei que agora colocaram um posto do correio na esquina de nossa casa. 
Sei que é vermelho e inútil.
Sei que morreste ali quando um bêbado recuperava duma noite de divórcio.
Sei que fiquei e nós sem tempo!

Comentários
1 Comentários

1 comentários:

Anónimo disse...

Gosto mesmo da tua escrita. Um talento que merece ser reconhecido.