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Ao escritor



Um furor vindo das pedras da calçada onde vozes interiores resvalam.
... minha mãe doente ...
... meu namorado ...
... a tipa do bar ...
... os semáforos e o patrão ...
Na praceta central do sítio passeiam-se pombas perdidas numa rotina circular. Abanam a cabeça e fazem danças quebradas na rua. Convivem com pedintes religiosos que de piedade só têm as missas mais recheadas de benfeitores.
É muito difícil acreditar em Deus quando se tem fome,
quando os filhos têm fome,
quando a gente vê a fome tornar animais as gentes.
Se as pombas falassem cantariam a fome melhor que Camões cantou Portugal. Porém, as pombas dançam certinhas, esquivado-se dos arames mais ou menos disfarçados que as fachadas barrocas ostentam. Vai-se lá perceber o mistério da possibilidade juvenil abafada pela certeza normal dos 40!
Ninguém percebe ...
... os filhos na creche ...
... a festa de ontem ...
... será que ainda sinto?
Nas varandas sempre fechadas fixam-se letreiros de profissões liberais. Umas flores tristes encenam um jardim escandalosamente mentiroso porque se pretende perfeito. E as cidades povoadas de pretensões, é o arquitecto de tal, o vereador de tal,  praça de fulano e os rastos das gentes duma época.
E nós? Qual a nossa época?
Somos do tempo das torres, das pedras da calçada, das pombas pedinchonas em cima das mesas duma esplanada multinacional. À noite rimos com o 3D eufórico, com as cores vibrantes, e com os gosto infindos soletrados numa infinita e desproporcional solidão que achamos perto.
Meu Deus que nos ajude!
Meu e O vosso ...
Lá ao fundo umas fontes modernas e sujas,
não sujas,
baças.
Há um nevoeiro em volta disto e meninas novinhas comem um gelado às colheradas desenfreadas como se não houvesse amanhã.
E não há!
... filhos ...
... amor ...
... livros ...
Minha mãe porque cresci?
(o pedinte. o rico. a mulher de preto eterno)
Porque nasci? -  dizem!
E no fundo nada de substancial. Mudam-se as pombas de sítio, substituem-se os pobres, engalfinham-se os ricos. Hão de haver sempre viúvas de preto com jarros de flores perfeitas, anunciando a morte que já espreita.
Crianças, penso, teremos menos. São os dois empregos, as roupas, panóplias de exigências fundantes de tão superficiais.
Quem nos falará ao peito?
Perguntem às pombas quando os escritores partirem.

Homenagem a António Lobo Antunes, Escritor
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