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Dolente



Quero morrer como se um suspiro fosse a vaguear nos lábios dum moribundo, ou um vulcão que, silenciosamente, desmente a sua fúria num acto de abnegação total e, por isso, incompreendido.
Fitar a minha morte eminente com as dívidas pagas numa espécie de epopeia da realização silenciosa, onde os mortos se passeiam com os vivos e a vida ainda tem honra. Saber que a vida se prolonga para lá da minha bandeira que declina e o sol içará o estandarte dum novo amanhecer soberbamente monótono.
Espero pacientemente um destino nulo do qual, o exercício mais excelentemente preparatório é em silêncio calado, tinta escura de paredes em tom de sombra e humidade repetida das rochas, dos penedos e ervas da madrugada.
Saboreio entre os lábios e a superfície já manchada dos dentes um cataclismo de ânsias e presságios mudos, deslocações dos sentidos secretamente contraídos num exercício perene de contenção e recato. O esmalte como um escudo contra as vagas que se amontoam fora, nos vultos assombrados dos meus vizinhos que me atormentam com esperanças vãs e fúteis duma deslocação extra corporal e, portanto, absolutamente mentirosa. Não existe trilhos exteriores à melodia das vibrações quietas que cada um experimenta num momento de dor infligida a quando a noite, ou do silêncio como dádiva dum tempo diariamente extenuante.
Vejam-se os milagroso e imponentes gatos abandonados. A sua semântica linguística organizada e estreitada numa sintaxe de comportamentos sóbrios, pactos e em vigília permanente. São como estátuas entregues à glória da solidão, onde só governa a sobrevivência mínima, sem exageros de ego ou filiação consumidora.
Desejo aprender com eles o mistério do arrastamento elevado, como se caminhassem dolentemente para o fim sem mostrarem a dor que os consome. É este o meu desejo permanente, fruto da reflexão calma que só a dor reflectida pode trazer.
Quero um morrer dolente.
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