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Disse-te com os olhos



Etéreo o ar e a luz vinda dum local oculto.
Como estou aqui?
(onde estás? aqui! onde é aqui?)
Sinto os lábios colados e os meus olhos vidrados à imagem que contemplo. A realidade assim parada num ponto só e todas as coisas um quadro. Será real?
Os pulmões desobedientes enchendo. Sou uma fossa de ar. Encanações entrem pela minha boca e a minha voz escondida dentro de uma caixa. Onde estou eu?
(vais ficar bem. aqui? não, noutro sítio!)
Em volta de mim vultos escurecidos e sem rosto remexem botões infernais que me dominam. Polifonia esta em vozes descaracterizadas e horríveis. Estarei morto? Serei uma máquina infernal? Serei eu?
Não sou.
Não sinto os pés nem o volume do volante nas mãos. Já não é noite, acho que já nem tempo é. Onde estarão os miúdos? Devem ter arranjado um brinquedo infernal com botões. Raios parta a canalha! A culpa é da minha mulher, mania de mimar tudo o que mexe.
(não feches os olhos. porquê? não aqui!)

Era dia 3 de Julho do ano da graça em que íamos, mais uma vez, ver a tua mãe, aquela megera insuportável que me esfregava na cara a pobreza dos meus pais. Casei contigo mesmo sabendo que não era rica como tu. Tu dizias que não tinha mal, que pouca coisa tinha mal, bastávamos nós. Lá no fundo tinhas razão, nunca me mentiste.
Voltando aos eixos, era Julho e saímos de noite porque tinhas ficado o dia em volta dos livros. És um homem sensível, por isso gostei de ti logo, mas ando a odiar os teus livros! Toda a tarde em volta daquilo, metido num mundo frágil e teu, e nós fora. Tens filhos, sabias?
Não deves saber. Não gostas muito deles, ou até gostas. Não percebo! Sei que estou numas dedicatórias tuas, impressas em papel claro e espesso. Deduzo que só ames verdadeiramente assim. Eu gosto assim. As minhas amigas passam por mim a gabar-te, a desejar-te, falando da tua sensibilidade e ternura. Mal sabem, só  és terno com a pena, melhor com a máquina de escrever. Se fosses um homem normal compravas um computador, ao menos a tua mãe não dizia que te gastei o dinheiro, mas não ... não podes despender do martelar certo e irredutível.
Agora corre uma lágrima no meu rosto. Era noite dum mês quente e fomos à casa da tua mãe. Não me perguntem porquê, mas tínhamos de lá ir. Meteste o cinto e pousaste os óculos. Os miúdos iam nas cadeiras modernas. Os miúdos amarrados a máquinas infernais com botões, como dizias. Os miúdos atrás e tu detestando aquilo tudo. Suspiraste e arrancaste. Peguei na tua mão e embalei-a nas mihnas. Agradeceste com os olhos humedecidos e inclinando a  cabeça para mim. Amavas-me, sempre amaste, Deus queira que continues a amar.
Pousaste a mão na alavanca de pele, prenda da tua mãe, não a alavanca mas o carro todo. Ela dizia sempre isso e olhava-me fulminando. Porque me escolheste pobre? Nem sou inteligente! Não leio como tu, não falo como tu e abomino os talheres da casa onde nasceste. Tudo em tão grande número, tudo tão brilhante como nos quadros falsos de alegria. Não me devias amar ... a culpa é minha!
Depois, um carro num cruzamento, os putos frenéticos atrás de pontos numerados num ecrã reduzido do mundo, eu contra o vidro da frente. Tu ... tu projectado. Não sei como, mas tu vidro a fora formando cristais infinitos enquanto o teu cinto atrás. A vida nunca te prendeu.
Portanto, acorda! Quero que venhas comigo dizer à tua mãe que o carro tinha defeito.

- O senhor está aí? ... siga o meu dedo ... sabe onde está?
(estou aqui)
- Trate de lhe dar algo para as dores que o homem está em stress.  
(que stress! estou preso)
- Senhor? Está a ouvir?
(o senhor está no céu. parvo)
- Tem de se acalmar. Teve um acidente de carro e está no hospital.
(Meu Deus! E a mulher, os miúdos e o livro?)
Comentários
1 Comentários

1 comentários:

João Bosco da Silva disse...

Pá... dizer que está excelente é dizer muito pouco. Absolutamente humano, tocando mesmo lá onde se diz que alma. Às vezes, abrem-se os olhos só quando tarde de mais. Presente a influência de António Lobo Antunes e ainda bem.