Share
ShareSidebar


Apoteose



O tirano tinha pele vermelha.
O tirano tinha pouca dimensão mas era enorme.
O tirano, ai o tirano ...
São bandeiras, massas, palcos.
Cânticos dirigidos ...
raiva escalada em dó,
em fá,
raiva pura.
Já não existe tempo ou recordação, somos todos um grupo dirigido. No topo está o trono e a beleza do tirano.
Santo, sem dúvida !
Depois existem escalões, mas nada nos afecta. A burocracia é caminho. Estão a ver as pedras do chão ? Pronto, já percebem a burocracia.
Houve um dia o vizinho da frente. 
Tinha família, umas crianças sujas (todos somos sujos) mais uma soma de fêmeas que por lá passavam. 
Era um homem calado. 
Acho que deixou de haver vizinho da frente, desapareceu o cheiro a fome infantil. 
De manhã existem meios de deslocação, tarefas comuns e a certeza da pátria. Eu já não existo. As primeiras pessoas já não existem, foram saneadas.
É o cartaz dos preços,
a promessa,
a riqueza infértil,
o número.
Já falei no fim dos velhos ?
... talvez ...
Nunca vi um Eu nas ruas. Vejo vultos.
Sinto vultos.

Hoje é dia de ração. Vejo as tabelas,
números,
dois
três
dez,
não há um explicação. Isto são tempos de eficiência.
Minha mãe morreu de fome. Só me lembro das panelas e a cara dela rota. Desde que o vermelho subiu ao palco só via minha mãe com panelas. 
Ela não foi sempre assim, como dizer, um número.  Acho que ela até conhecia mais que o vermelho. 
Um dia houve uma mãe, hoje não há nada.
Na fila,
há sempre filas,
vejo um preto magro. Os outros olham para ele e acabam por lhe bater.
Acho que o vão racionar. Já ninguém morre, todos somos deslocados.
Um dia número contributivo, noutro montante de ração.
Nada se perde, tudo se transforma.
Já tive filhos, mas as crianças deixam de existir. A gente só serve para parir uma peça:
rapaz - parafuso
menina - roldana
joão - óleo 
ester - reguladora de temperatura na casa de um burocrata. 
Ou seja, nunca tive filhos, simplesmente fui contribuinte. Cumpri a lei. 
Tenho uma senha. Sou o 3056747650.
Estou garantido por hoje.
Repito para mim:
3056747650
3056747650
3056747650.
Não sei mais nada.





Comentários
1 Comentários

1 comentários:

l4kuti disse...

Hey, Leandro! Gostei muito deste novo texto. Quanto tempo, cara?

Gostei muito: nada se perde, tudo se transforma (não gravei exatamente, mas a essência da frase é esta). Foi uma ótima escolha citá-la neste texto. Combinou perfeitamente. Mas não posso dizer que compreendi tudo. Sabe como é: expressões idiomáticas... Embora falemos as mesmas línguas, obviamente elas sofrem flexões. Mas a mensagem principal eu captei.

Obrigado por proporcionar aos meus olhos este paraíso de letras. Mas não entendi o porquê das pedras serem burocráticas, você poderia me explicar sua intenção?

Adeus,
Mateus. Até mais,,