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Memória de uma velhinha I




A cabeça entre os braços. É um abraço de compaixão.
Trocam-se olhares, mas sem verbos ou advérbios, só os olhos e a alma se cruzam.
Ficam mais quentes os corpos, esquece-se o medo de ficarmos sós. Por segundos, é verdade, mas esquecemos que estamos basicamente sós. Condenados a diálogos permanentes connosco mesmos.
Afastam-se os olhos, fica o silêncio e o sussurrar das palavras trocadas.
   (quero ter uma memória de elefante esquecida. uma memória que recorde tudo mas que consiga esquecer. tem-se medo das marcas)

A senhora que vejo da minha varanda é uma mulher muito especial. Do alto do seu pedestal de idade, situado no segundo andar. Seja dia ou noite, a mulher vestida de negro e com carinha de espectadora do tempo, vê a população a passar.
Vê os carros, as pessoas, os cães com seus donos, os cães que não têm dono nenhum, os meninos que chegam da escola, o senhor empresário que vem no carro novo ou o adolescente que sai para ver o grupo de heróis com que anda.
Tudo lhe passa pela vista, ali debruçada sobre o mundo. Ninguém repara ou nota sequer, mas ela está lá vendo. E volta todos os dias, com o olhar atento de quem se concentra totalmente naquilo que faz. Um olhar de quem sabe que seus olhos já não vão ver mais nada que  a rua, porque em casa já levaram tudo que mexia.
Só ficaram os retratos das amigas (algumas já do outro lado), dos filhos (ricos empresários que só vê no Natal), do marido (que já faz companhia às amigas do outro lado).
Assim, não olha para dentro de casa mas para fora. Por dentro já não há nada para ver, o tempo levou tudo. Tudo que valia a pena ver.

Lá na rua onde eu moro,
conheci uma vizinha.
Bem, não a  conheci, via.
Melhor, ela vê-me enquanto corro.

Talvez ela conheça quem me abraça
e um dia desça à praça
falar-me do seu cantinho.

E em segredo me diga,
como não disse a ninguém,
que o segredo da vida
é não ter fotos mas olhos.

   (...) O resto é a memória de elefante que guarda e só num abraço de compaixão conta, mas sem palavras. Só nos olhos e na alma que sussurram a felicidade.
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