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Mês



Doravante terminam-se os vivos num suspiro e a história fica assombrada. Escuras nuvens passarão nos parques, bichos estranhos percorrerão a terra e um sorriso pálido
(branco mesmo)
percorrerá os que chamaremos defuntos.
Lágrimas cairão dos olhos
(entidades e sal e pesar)
e as entidades da terra, ou seja seus pilares, tremerão de pânico e sofrimento.
Feridas serão feitas,
cavadas,
polidas de verde ou pedra.
ossos existirão e cremações impunes varrerão o ar de cheiros adocicados dos condenados.
Foices erguer-se-ão na hora certa,
indicada,
determinada,
em que as lamparinas de azeite se extinguirem.
E extinguir será o verbo dos pequenos,
as crianças nascendo com lágrimas e ranho dos pais que as prevêem mortas numa açucena branca e estática.

Assim é o mês dos trovões sem fim, dos feitos mutilados pela brevidade de tudo. E somos todos tão fracos!
"Ainda à dias passava na minha rua uma mulherzinha novita. Veja lá, finou-se e deixou-nos cá à espera dela. Já me deve ver no banho enquanto vislumbro as rugas e digo
- Fui tão linda
e agora umas manchas na cara e umas açucenas na mão para levar ao marido que já foi. Ele que dizia antes
- És tão linda
e eu era mesmo, já não sou, mas era
e agora tudo era, mais foi, mais partiu ...
Tenho uns retratos na parede em cor de sépia que foram lindos e agora me assustam porque me falam: vens para cá e eu respondo
- Sou linda que mania ...
mas já não sou.
Linda era a finada vestida de preto e um terço, que nunca rezou, porque a morte veio sem avisar. Se avisasse, talvez poria um véu aos sábados e domingos e encheria as igrejas com lamurias e azedumes que a vida tem sempre, porque nunca somos novos,
nunca o tempo suficiente para ser novo,
digamos.
É bom corrigir isto porque as açucenas olharam para mim e eu já aqui perdida a pensar que ia ser terra para elas.
Portanto vou tratar do finado hoje para ele não vir tão cedo. Depois tomo um banho e vejo as marcas do tempo e afasto a defunta que passava aqui várias vezes.
Até era bonita, coitada.
Deus nos livre que vou mandar rezar umas missas.
Até depois"

Nem tudo é mau, diria. Ficam-se umas heranças e uns cantos em tom menor que acalentem o espírito. Sem falar nos putos, coitados, que acham a imortalidade numas pinturas pretas de tudo:
é a roupa
é a cara
é o sorriso escuro.
Esta raça da gente nova que se perde entre sangue e vampiros sem nexo e esquece que fazer filhos não é tarefa de sempre. Um dia acordamos e o tempo passou, a mulher tá caquéctica e a precisar dum lar porque só diz
"Ai ..."
e nós sem saber que lhe doí.
Levam-se umas açucenas ao asilo onde a enfiaram e vê-se a coitada ali a olhar os vidros sem perceber que são janelas. Como as moscas, sabem?
É mesmo como as moscas, um som surdo que não ouvimos, mas está lá. Está lá tudo que passou, perdido na atmosfera dum nevoeiro que nos consolida os ossos. Já não vemos e as conversas a reduzir,
a reduzir,
a reduzir.
O núcleo cá dentro cheio de dúvidas que a vida não resolveu e nós adiamos. "Mais tarde" e nunca veio, nunca,
juro que nunca mesmo.
Portanto critico os putos que impunham velas nos punhos
(desculpem a redundância)
e se fazem passar por coitados a quem o mundo destrói pela sua insensibilidade perene.
Habituem-se, a vida doí mesmo.
Quando tiverem de sepultar tudo em dias de chuva e reviver o ocorrido em "festas" anuais programadas vão perceber.
E agora, desculpem a maçada de não dar seque uma reposta, vou dormir. Amanhã tenho umas cinzas futuras para ver e arranjar com açucenas.
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