Share
ShareSidebar


A divisão alegre



São restos !

Tem-se dito que as pequenas terras guardam os grandes segredos, que cada resto de campo, árvore ou riacho conserva um pedaço dos deuses, um pedaço de felicidade transbordante que acalma os espíritos madrugadores e as velhinhas que correm às novenas. 
As aldeias são um mundo melhor, são um resto de amor curioso que só os despegados conseguem entender. Nem todos podem perceber a escuridão dos olhos cansados, muito menos louvar silenciosamente o negrume que as peças da lavoura guardam para quem tem admiração por elas. 
Tudo veio deste místico de terra e sangue, semente e colheita, vida e morte. Este microcosmos de ceifas e pomares, distribuído por sorrisos descomplicados que nada entendem mas tudo dão, é o início.

Cair na pequena tarde dum domingo.
O dia longo, a tarde pequena porque vens e irás e o tempo pouco.
Fiz-te um pequeno lanche de coisas do mercado, é pouco, mas é tudo que tenho.
Chegas.

Cair na memorável tarde dum domingo molhado.
Existem portos que se findam quando a guerra toca a pele.
Vinhas sem cor, baço.
Ignoraste o gato e ele estranhou que o sol te tenha secado as veias.
Baixaste os olhos para um ponto escavado no chão do pequeno apartamento que tenho,
serão nódoas ?

Voltei à terra para o funeral da minha mãe, era Junho e as flores secavam sobre um sol que de folia nada tinha. Chorei toda a viagem de comboio mas ninguém me viu as lágrimas. Na cidade ninguém é triste ao ponto de se descontrolar. Quem sofre finda-se, os que não conseguem tal proeza pagam por algo que os ouça. É tudo um mundo de profissões liberais onde a liberdade pouco interessa. 
Na estação minha irmã pegou-me a mão e levou-me. Ela ficou no antigo solar, viu o corpo da grande senhora definhar, sabia os meandros da escuridão que se acumula na alcova que um dia foi berço.
Não percebi a morte, ainda hoje não entendo. Recordo os plátanos enormes manchados de branco, as folhas verdes enormes quase estáticas, o rio pequeno junto ao cemitério, o roxo do padre entre o branco das mármores.
"Sinto saudades do campo" - pensei, mas o campo não me respondeu e tu querias um canto pequeno perto da loja e eu já não tinha vontades. 

Amo-te ! Os teus olhos confessando tudo.
Arritmias capazes de preocupar o senhor dr. lá da terra.

Aproveita-mos o orvalho de cada madrugada de Março, isso ninguém nos rouba. Vi tantas vezes o sol nascer nesses teus braços.
Senti amor enquanto a cidade expulsava uns, redimia outros e iludia tantos nas artérias dos banquetes.
Por mais folia que tenha no corpo por ti faria Roma em três dias e partiria para as margens dos rios da babilónia.
Acredita que me faria sem pátria por ti, renunciaria ao campo se me pedisses.

Nunca mais vi uma árvore de fruto florir. Perdi o paladar para fruta e deixei-me de lanches. Sou profissional num prédio alto, penso que sei coisas úteis porque me comem as forças como os modos  sugam a vida de uma criança. 
Ocupei o tempo, todos o fazem aqui de forma tão fluente. Tenho umas saudades danadas da minha mãe e quando é Inverno vou ao campo ver a campa dela. 
Do apartamento trouxe a carpete que calcaste, tenho esperanças de lhe tirar todas as nódoas que te assustaram. 

Morreste num pequeno incidente que nem nas notícias veio.
Um cabelo a menos, o corpo a mirrar, os olhos cada vez mais baços até ao ponto de nada terem.
Quantas coisas guardaste de mim ?
Diz-me se onde estás ainda existem árvores e um apartamento pendurado no ar onde se pode ver o sol nascer ...

Comentários
0 Comentários

0 comentários: