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O Rei



Caro monarca

Não te sei falar,
que pessoa utilizar,
devo ser íntimo, distante, respeitoso ou breve?
Sinceramente nem sei porque te escrevo. Nesta altura do nosso tempo uma imagem de familiaridade apoderou-se das nossas ansiedades. É possível que nos tenhamos tornado comuns não existindo já penosa doce dúvida, aquela que alimenta a esperança quanto aos fenómenos pessoais, mas mesmo se perdido tudo isso, quero por notas falar-te do essencial:

Tens tudo na mão e então? 
Quis-te,
quero-te, 
não te terei. 
E destas amarras de desejos e tempo, vejo fugirem os momentos calmos na busca do teu corpo, das tuas ideias, como se as certezas que o teu coração guardam fossem mais essências que as minhas. 
Há em ti uma aproximação da verdade que nunca, nem mesmo nos momentos mais íntimos, consegui entender neste grupo de estados que sou eu. Talvez se te tivesse à distância de um pequeno beijo, ou mesmo de uma noite profunda de encontro dos corpos, poderia adquirir um pouco das tuas ideias líquidas que me levariam a sede que sempre trago. 

Rezo estas frases nos momentos mais conscientes que tenho, aqueles em que o espírito divaga sobre o sentido das pessoas:
porque vamos aqui,
onde fui buscar esta pessoa,
que solução há para esta dor,
e o marido ao lado conduzindo, ou o nosso corpo num transporte público qualquer percebendo que a paisagem passa lá fora e uma solidão infinita escondida na cara séria.
Meu precioso rei, rezo estas frases na sobriedade da minha alma porque não aguento ver as pessoas rirem sempre em poses feitas. Já deves ter percebido tudo isto bem melhor que eu, conseguindo imaginar um grande sentido na senhora que quer vender felicidade num depósito a juros, mas eu não sei como encaixar neste Outono a luz dos carros que nunca para.
Por isso me viro para ti, há encanto nos teus olhos e uma doçura morna nos teus momentos que, por magia ou castigo, me tocam e despertam uma amnésia tão desejável que poderia chamar de tóxica, como se fosse um amor tão infinito de mãe mas sem reprimendas, só compreensão e um chá que aquece os ossos mais desabituados ao sentimento de se ser notado.


Mesmo que seja um desconhecido olhai para mim, meu rei, fazei com que estes salmos que canto sejam mais sapientes que as pedras que calco. 
Salvai-me de ser eu! 

E preenchido de humilhação digo agora tudo o que o vício me impediu de te mostrar de forma clara. Não existe nenhum caminho onde brota felicidade das rochas, nem nenhum milagre revela realmente as pessoas que amamos. Há sim um misto de abandono e entendimento que os olhos entendem e a mente teme.
Terá o mar um só local em todo o globo?
Pensa bem nas águas que se distribuem sobre o atlas que pisamos, os lagos, os rios, os lençóis. Estarão eles num local definido pelas regras da preservação?
Duvido.
Infelizmente ninguém nos ensina a acreditar no tempo e com isso perdi o dom de transformar os espaços calcados numa narrativa dos sentimentos. Talvez por estar eu estar tão limitado a mim não percebas o porquê de pontes em vez de fronteiras e a cada ideia construas um lar limítrofe.
Existe claro a hipótese de tudo isto ser um conto inventado, onde por influência da solidão eu tenha tecido a manta que receberá a fonte de todas as minhas tormentas, é que quando olhamos o rosto ao espelho vemos demasiadas falhas na figura, logo porque os nossos desejos e medos não são reflectidos, no reflexo falta todo o universo que vivemos no silêncio da nossa conversa interior.
Resumindo, posso ter visto o que não existe, ou o que existe ser algo impossível de se ver porque não compreendo, mas, mesmo com castelos no céu te digo, este sonho é um lugar que vai do céu ao inferno no instante da despedida ou da recusa. E se tudo o resto pode ser um devaneio, o escuro que pinto cada manhã é real como as insónias que nos roubam tudo que prezamos.

Aquelas colinas antigas da terra onde nasci, ou as outras que estão nas terras que visito e que tanto me falam dos tempos primeiros, escondem a história do universo conspirando novos dias importantes para cada um. 
Como explicar a geografia de uma história? 
Amamos, perdemos
e todos os sentimentos resumidos em passos tão desconexos que podiam facilmente ser outra coisa. 
Diz-me como ei de ter o tempo devolvido quando por teus dedos entendi que os bancos podem ser relíquias? 
Amen.

Agora, terminada a prece deixo-te a despedida de quem deseja sempre que os dias tragam uma explicação serena para os momentos que passaram. Espero do fundo do ser que me tenhas percebido como quando entendemos uma palavra dita na infância que só faz sentido numa desilusão adulta.
Até breve.

Do futuro.



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