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Elegia



Aquela terra sempre se alimentou da autoridade, de uma linha de ascensão bem definida, misteriosa, alheia aos estrangeiros ou exilados.
Era o padre rodeado de uma nave com acrescentos de azulejo, as notas pequenas e longas desenhando no espaço uma melodia arrastada pela vida cheia de necessidades de enganar a morte.
Era a dinâmica de acender as velas, os movimentos contidos e repetidos de preparar o sacrifício mais enxuto que vi a vida toda, um êxtase de panos brancos sobre granito e uma sineta de bronze dourado que um alvo menino
(soube há dias que agora meninas também)
de joelhos tocava quando todos murmuravam a salvação mais própria que se pode imaginar.
Era representação, um palco e uma plateia, teatro fundido onde as personagem irradiavam poder para lá das portas verdes de madeira contaminando o que se chama "vida" até ao real.
(quero falar do místico. o som. o cheiro)
Viventes que são classes, saindo para uma avenida de plátanos capaz de prolongar os mistérios mais profundos da alma numa vereda incompreendida pelos exteriores.
cada grande verdade é própria. não se explica o desvelo, sente-se. os outros dirão que as histórias salvíficas não passam de mitos menores. não os desminto. o importante é pequeno, microscópico se fosse científico e analítico seria um fenómeno das partículas quase sempre invisíveis à nudez da vista. isto não tem nada de maravilhoso, confesso até que são memórias, mas não há mais nada a contar, estou inclinado a dizer a verdade só a recordando.
É o vazio da totalidade e dessa certeza perene veio o Lopes.
Lopes não é um nome,
(eu não falo de nomes. não há mascaras. está tudo aqui no tempo que anda com os meus pés sem passar)
é uma metáfora bem dita cheia de imagens, gestos, respirações de admiração e louvor aos céus. Lopes pegava no divino senhor e o transcendente era todo dele
mãos de profeta
cara de querubim
pés de peregrino aprumado pela nave forrada a tapeçaria vermelha sobre o soalho, esse espelho de verniz exagerado capaz de unir os rostos de joelhos e o azul plástico da abóbada celeste inventado pela mão dos adoradores. Céu e terra bendizendo as misérias tradicionais do humano.
(decoro. família. certeza)
Uma presença capaz. Ninguém tinha a dimensão do oculto resplandecente como ele tremendo da mão direita enquanto os olhos guardados por vidro escuro mas translúcido agarravam os seus pares tão inferiores em estatura do inefável.
Vinha sempre acompanhado da mulher, casal de autoridade cingida pela idade sem conta. Nunca falavam, o tempo encarregara-se de dizer tudo em mistérios repetidos em contas muito parecidas mas nunca iguais. Claro que havia ódios escondidos, mas dos santos não se conta a mesquinhez.
quem já leu uma hagiografia? rodem a palavra na boca, mudez seguida de um ar ocupando a boca explodindo um A seguido de um G transformado em ponte de vogais e depois repetido para unir um fim silencioso. sintam aquele tom de relato cândido como a doçura não sabe descrever. cálido como o branco nunca será. desprendido como nenhuma forma viva alguma vez poderá vir a ser. mais uma vez vejam, as pessoas mitificam. quando há demasiado possível o corpo corre para o impossível e lá fica escravo do desejo: é isso uma hagiografia. 
Desciam no fim das cerimónias pela dita avenida e resumiam em si o que se pode pedir a um vivente devoto. Andavam num passo bem diferente dos fenómenos da idade, eram simplesmente certos, conheciam a realidade e faziam dela um escudo de resguardo. Quem se sabe garantido não teme a perda dos talentos, abrem-se as covas e deixam-se os baús expostos, confia-se na superioridade para cobrir a fraqueza ou as linhas quebradas do futuro.
Tinham aquele amor deles, pouco mais se pode dizer porque no amor há o universal romântico e há o real pessoal. Sei que iam para casa enrolados no seu mistério de eternos como conceptuais ideias aladas. Desciam a rampa de pedra da rua apertada ao lado esquerdo da garagem verde, por vezes passava um gato e não era raro ver-se a assombração de um cão castanho pequeno e longo, olhos de água como só os cães abandonados têm por talvez guardarem a memória de uma devoção total que a idade apagou, esse conhecimento do desespero sem ouvintes
ou desconhecimento irracional,
não saber nada,
nada nem ninguém sabe seja o que for.
A chegada ao seu repouso era assim povoado por um estreito misterioso e animais protegendo a solidão da luz sempre quente naquele tempo, que hoje recrio por sobreposição.
Do outro lado, já mais longe, bem perto de quem passava o campo de terra batida onde umas pedreiras tinham mais cristal que qualquer mulher rica que vou conhecendo, era a escola. Na escola havia uma menina e nessa menina é que está toda esta história.
Olhos castanhos de história
boca curta e gulosa da vida de história
mãos morenas e macias de história
pele lisa até à cara larga de história.
Sei-lhe o nome mas não digo, aprendi que as palavras tornam o medo em carne e os horrores em situações que se discutem numa esplanada quando tudo acaba e o ciclo diz "vê, era pó".
há uma nota que tenho de deixar aqui e por isso fui ao fim da página buscar isto. se a vida pode ser tão repleta porque é incomensuravelmente vazia? ficam as chegadas e as partidas, as últimas bem mais presentes que as primeiras quase sempre indiferentes até lhes ser dado o tempo. no meio há um vocábulo preso na língua que amarra a fala e evita o seguinte. a grande condenação das despedidas é que elas carregam o tempo sem nome e a gente não sabe mais falar do que vem depois. 
Ela sentava-se com calças coloridas justas ao corpo fino e invisível das crianças, rodava na cadeira porque o universo era tão total, estava em todos os cantos da sala de madeira e livros enclausurados em vidros que a luz tocava com reverência talvez mais vivente nas vistas dos pequenos sentados em volta.
Era pouco dada aos estudos mas tinha uma caligrafia redonda, como mais tarde descobri ser coisa dos documentos antigos. Desenhava cada vocábulo com danças serenas que não compreendia, tinha sido ensinada naquelas diligências e ficara dependente de as cumprir para evitar o castigo
(recordo o cão. terá falhado numa obrigação? terá perdido o direito à fidalguia do aconchego?)
que nela parecia ser sempre a única direcção.
Estava constantemente de castigo, retida na sala, no canto do recreio, corrida das brincadeiras da rua e fechada numa morada que parecia evitar dizer qual era e mais ainda, odiar tão naturalmente como um bebé quer existir sem saber o porquê do caminho.
(em vez de caminho quis pôr vector. há mais direcção em vector. é mais científico e logo aceita-se melhor como comprimidos de calma)
Se faltava a tudo não faltava nunca à igreja,
naquele lugar,
naquela terra,
neste espaço de fábula tão desenhada para a moralidade
ninguém faltava à igreja.
Hoje acho que era algo agregador, mas no existir simples não há cola social, há a vizinha que se quer ver e um andar simples que se entranha com as gotas do leite.
Não acho que fosse uma anjinho dedicado ao senhor. Não ajoelhava nas madeiras esticadas atrás de cada banco, quase sempre queria ver o coro e falar dos pés do organista que nunca paravam enquanto a luz ia mudando de cor pelo vidro tosco desenhado em cruz vermelha e quadrados transparentes feios que aleijariam a visão do mais zen dos homens.
Um dia em casa dela mostrou-me uma cópia.
sim eu habitei o impossível! agora ando nas ruas que são morada. vivo tão fora do que me foi dado.
Ela fazia deveres para lá dos meus e eu ficava admirado por ela ter regras mais difíceis que as minhas.
(a cópia é aqui uma das muitas obrigações. ela tinha também de limpar. fazia também contas num caderno quadriculado de folha amarela que também toquei com pasmo)
Juro que lhe invejei a carga, quando se é pequeno só se quer algo para fazer,
(há até muita gente que nunca cresce)
mas não tinha tanto afecto pelas manchas que regularmente trazia no corpo, ou o medo de vigia que lhe assombrava os olhos tementes de ser descoberta. Passei uma tarde naquela casa, visitei o estúdio, um divisão totalmente estranha para mim, cozinha, pomar, um pequeno oratório e depois os campos verdes mais distantes da casa.
Voltei ao fim do dia pelo caminho que descia até depois voltar a subir, era assim que chamava a estrada de casa em criança. Quando cheguei não temi a repreenda de ninguém, os meus pais tinham demasiado trabalho para gastar o pão em morais de caligrafia perfeita.
(estou agora um pouco confuso,  foi tudo isto neste instante? penso que esqueço muita coisa mas assumo o que escondo. manifestarei o que puder mas os dias já não são uma expressão da minha vontade. por favor alguém me diga, o que estou a contar está a acontecer? em que agora me encontro?)
Insisto na punição porque no último dia que a vi ela chorou.
(que a vi próxima. que a vi amiga. fui continuando a ver mas sem proximidade).
Vínhamos de um monte perto do que foi meu um dia e a estrada já se avistava. Perguntou-me as horas e eu, exibindo a minha destreza com o relógio, dom que hoje não possuo porque isto de crescer também é perder, afirmei um número capaz de lhe impor um terror supremo.
Com o rosto vermelho, olhos semi cerrados e lágrimas grossas capazes de sufocar, disse-me que faltava à missa. Eu não entendi, era semana, pensei que Deus era uma coisa para os dias em que não se trabalhava, um americano hobby. Afinal o divino era permanente, não existia só quando pecávamos ou íamos dormir, nem só exasperava com as nossas ausências matinais de Domingo, Deus era assunto para uma menina pequena, traquina, sem pai nem mãe, chorar dos olhos verdes como quem sabe que não é certo copiar com erro a palavra tão direitinha na página verdadeira.
(livro da lei. leis. obediências educadas)
Correu pelo alcatrão ainda recente, que hoje parece um retalho de obras sucessivas capazes de mostrar como a vontade do mandante se altera, e é o frémito do desejo que faz a economia avançar. Pensei seguir a estafeta, mas o número e o dia não me diziam nada e quando as coisas não nos falam facilmente se deixam os sofrimentos encarregues à distração piedosa.
Nunca mais brincamos, na escola não me falou muito mais e ao domingo começou ir junto para o pé do avô, o Lopes, e eu de tais autoridades não me aproximava porque minha mãe foi perita em ensinar-me o lugar.
Um dia, que pode ter sido próximo ou distante da hora da rotura, perguntei à minha mãe quem era a menina do Lopes.
Soube que era órfã.
Soube que o pai lhe matara a mãe e que fora preso.
Soube que a minha mãe conhecia a mãe dela e chorou quando soube e que tinha pena da filha e do irmão assim entregues aquelas pessoas de idade tão "pouco alegres".
Não soube entender, e ainda hoje me confundo com graus de parentesco, mas percebi, como talvez só uma criança entenda na sua simplicidade alimentada por confusões sem tempo, que Lopes tinha uma neta a quem educava como filha doutro tempo e eu com o passado não queria muita coisa, só queria crescer.
Hoje o Lopes já morreu
(consta que foi zeloso até se lhe findar a vistinha)
, a escola fechou
(passou para um agrupamento de várias escolas num edifício novo que parece mais um hospital veterinário)
e a Igreja continua branca a evangelizar a avenida.
(para todo o sempre até ao regresso do ungido)
Da menina nada sei.

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