Podes-te deitar agora. Apagas a luz, viras-te para a esquerda que eu vou ficar pelo reino da direita.
A chuva lá fora abafa o silêncio da noite e nós vamos dedicar-nos ao descanso dos nervos.
Lembras-te de quando era Natal? De quando era Natal em Dezembro! Porque agora é Natal logo no fim do Halloween. O povo enche os centros comerciais todos, como se fossem as antigas romarias e festinhas do Verão e passeiam lá, como o Carlos da Maia e o Ega no fim dos Maias. Toda aquela gente consciente de que o tempo passou e não fizeram nada.
Mas lembras-te? Era tudo tão cheio de pessoas. Ia-mos à missa do galo (nunca percebi porque era do galo, afinal, quem tinha nascido era um puto! Ai Perdão! Deus!) e víamos os bebados que vinham blasfemar partes baixas para a igreja.
Será que te lembras das desfolhadas? Aquelas feitas à luz da lua. Ainda te deves lembrar... Era tudo uma folia de palavras despregadas do peito. Dizia-se os piropos proibidos pelos círculos dos justos. Abriam-se os velhos aos "abusos" brincalhões de uma piadinha ou gracejo.
Se não te lembras amanhã vou-te pôr à frente dos olhos aquele romance do Dinis, o das pupilas. Lá vais tu resmungar qualquer coisa, pegar no maço encadernado de folhas e desaparecer no mundo da esquerda e eu no da direita.
Está frio. Vira-te para aqui, quero ver se te lembras de algo. Quero ver os teus olhos reluzirem como antes. Estou farto dos dias mortos, da tua esquerda e da minha direita. Quero misturar tudo. Arrancar o jornal dos dedos teus e abrir o caderno que fomos escrevendo.
Se calhar não escrever logo, porque já não sabemos segurar a mão um do outro, mas pelo menos ler. Arrastar os olhos curiosos pelas linhas antigas. Ter curiosidade pelo nosso antes. Um antes que não tinha esquerda e direita.
Porra! Vamos ler um pouco daquilo e ver porque te esqueceste. Ver porque já não dá. Estás a ouvir?
Não...
Tá frio! Vira-te para mim agora. Basta virares os nervos, as articulações e os olhos, sim os teus olhos de desfolhada em noite de luar, para mim, para a direita.
Vá lá, está frio.
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