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Na chuva



Escondido numa esquina entre a rua 85 e avenida dedicada a um coronel qualquer.
   (a gente morre na guerra dos dias. quem se lembra de nós?)
São duas da tarde, chove e os cães vadios olham para ele com olhos de pedintes, tão humildes que provocam náusea  só de fitar. Tomara tivesse um naco de pão ou bolachas para lhes dar. Aos mendigos não dava nada, mas aos cães era diferente. Coitados, eram fieis, as pessoas não.
Na cabeça o redondo de umas notas ouvidas na radio de manhã. Devia ter ido para música, tinha bom ouvido. Preferiu as ruas, as trocas às escuras e os segredos da linguagem cifrada do submundo. No fundo, escolheu bem. A música é para maricas - dizia o pai enquanto lhe batia- desocupados. Só gente dada ao ócio se pode entreter com ritmos e pintinhas em folhas. Quando se tem de desenvencilhar das tramas escuras da vida, não há tempo para a música.

No dia em que era pequeno as pessoas andavam como sombras lívidas. Nunca conheci sombras escuras, só gente que tem pão pode fazer sombras com "substância",
   (no caixão devia ir uma bandeira. era drogado! isso é para os heróis)
daí o escuro. Ahhhh! Eu é que sou o iletrado insignificante. Vocês com tempo para ler é que deviam perceber isto à primeira.
Pronto, começando de novo. Quando era puto (perdoem a linguagem, mas foi o que me chamaram sempre) as pessoas passavam, a minha mãe pedia comigo exposto em pose de fome e desespero. Ainda me lembro das caras de horror e desprezo.
  (os cães não têm desprezo. qual é a pátria dos cães? não têm... por isso não tenho bandeira)
Aprendi aí a ser o centro da atenção. Um dia fiz um grupo, fiquei chefe  e arrancávamos putos miseráveis
(nunca meninos, meninas ou bebés. só conheci putos. fui sempre puto a fazer de canário de horrores)
às ruas cheias de becos escuros e pérfidos e levávamos a mercadoria para Espanha.
(esses já nem putos. eram mercadoria. os cultos iam vê-los na internet. nunca percebi como era possível isso à gente da "finess" )
Ganhei uns trocos com os putos
(nunca lhes chamava mercadoria. um era filho da minha vizinha. tadinha era pêga e drogada. vendeu o filho. um dia matou-se. gamei-lhe a carteira e fiz um sinal-da-cruz)
meti-me nos casinos e conheci gente da alta. Eram tão cabrões como nós mas mais mentirosos. Cheiravam umas linhas brancas e foi aí que comecei.
Melhor, foi da mão de um senhor da República, que depois me veio fazer uma análise às partes baixas, que recebi a minha primeira linha.

Hoje vi o pacóvio larilas na televisão enquanto fazia a minha paragem para café. A manhã tinha rendido bem. Não chovera e o povo da guita tinha vindo todo às comprinhas ou encornar o pessoal com quem dormia à noite. Quanta Madame me dava uns trocados escuros e depois ia fazer uns ais numa casa qualquer. Quando era mais jeitoso pagavam-me a mim para meter a agulha no disco de vinil.
Um dia comi a mulher do larilas. Também a  vi na televisão, toda pintada
   (sua eminência leva a bandeira da Nação pelos altos serviços que prestou)
e apoiada no gajo. Que camada de filhos da mãe.
E agora esta porra de chuva, mais uns cães esfomeados e uma gente a correr.
Estão sempre a fugir ... a fugir de mim.
Comentários
2 Comentários

2 comentários:

Michael Doublott disse...

Olha, eu gostei da postagem, principalmente do inicio.. adorei mesmo.

Michael Doublott disse...

veja a minha postagem atual... espero que goste tambem.