Acordou com um sabor agreste na boca. Os olhos fechados, lutando com a luz, e um sabor agreste na boca. A língua, assustada com tal condição estranha, remexia os cantos de sua casa. Olhava o tecto, via atrás dos dentes e esfregava as paredes.
Coitada.
Estava perdida numa busca por sentido.
Quem lhe invadira a casa? - não sabia.
O dia ia-se tornando claro lá fora e os vidros mal limpos iam forçando a abertura do olhar. Acabou por encostar a cara à almofada e abrir os olhos. À sua frente o relógio marcava uma hora adiantada. Fitou um segundo se mudar nos algarismos vermelhos e foi remexendo a boca de novo.
O segundo passou, e o mistério permaneceu. Melhor assim.
Virou o corpo e ao lado alguém. Alguém na cama.
A língua parou de susto, e os olhos brilharam de excitação. A mão foi experimentar um toque e o coração agradeceu a companhia. Os dedos ensaiaram uma carícia e a boca um beijo. A peça decorreu sem ensaio, porque as coisas da alma estão sempre certas.
O Alguém esboçou um sorriso e afundou a cara na almofada. Queria dormir - deduziu. Levantou o corpo a custo e vestiu o robe, para nu já bastara durante a noite. Os dias claros exigem um pouco de pudor. Entrou na sala, arrumou alguns restos da madrugada e passou à cozinha. Em cima da mesa estavam uns bilhetes da empregada. Não lhes ligou.
Voltou à sala e olhou a rua. Passava gente a cumprir obrigações religiosas desejosas de pagar o céu. Não sei se vão conseguir. Deixou os devotos e passou à cidade. Estava radiante! O sol aberto disfarçava os pedintes, as ruínas e o bairro do crime lá longe.
Linda cena aquela. O sol faz milagres.
Abandonou as vistas e voltou ao quarto. Alguém já acordara e fitava os segundos passar. Despiu o robe e assumiu-se criminoso, que se lixe o pudor. Encostou a cabeça ao peito daquele corpo com sentido e fez silêncio.
A vida corria na rua, os segundos estáticos no relógio, o peito sentindo certezas. Recebeu uns mimos na cabeça e um abraço forte de seguida. As mãos envolvendo o seu peito, a sua dor, a sua alma. Sentiu amor!
Levantou a fronte de entre os corpos juntos e roubou um beijo. As duas línguas tocaram-se, o ar quente, vindo da garganta onde pulsam as palavras melodiosas, trazia um sabor a canela agreste. A língua, até aí desconfiada, percebeu: tinha visitas em casa.