Share
ShareSidebar


In memorium (o tempo não para)




Entre as pedras dum dia de Novembro, esse mês em que o passado nos salta aos olhos e vida se enche de flores em forma de coroa, o gravado no mármore saltou-me à vista.
Conhecera aquele cemitério numa visita antiga que fizera num momento turístico. Sempre gostei de visitar lugares estranhos e os cemitérios com os seus anjos caídos, as suas cruzes altas e os seus mortos sem nome sempre me cativou.
Na altura, não reparei na placa branca com letras douradas.
Na hora inicial, não senti o frio do fim daquelas almas pares.
Na loucura de ver tudo, não encontrei um laço comigo ... não encontrei.
Só mais tarde, nesse Novembro eterno preenchido de cera e candeias vermelhas que assustam as crianças e acordam os adultos, vi a ponte entre um tempo anterior e este.
Quando somos novos temos o mundo na mão. Corremos as pedras dos rios, amamos os pinheiros distendidos nos vales e respiramos golfadas de ar que ultrapassam os pulmões de antes.
Antes eu tinha o mundo, agora ...
pontes
letras
mármore ...
Naquele Novembro vi o início do fim e o principio dos olhos que realmente vêem. A história era de amor, não meu, de antes!
Viera passar uns tempos à casa antiga dos meus pais. Era numa terra pequena, com pessoas de cabeça pequena, e umas estradas pequenas que levavam às cidades. Queria superar um divórcio antigo: o divórcio da alma. Pensei que o campo era solução, mesmo que ali não fosse o campo. Era a terra pequena.
Quando cheguei vi o marco do correio antigo. O marco encarnado de boca aberta ao mundo, onde o sangue de muitos assustava a terra e atraía os homens. Era um marco com história, dizia o meu pai e eu sentia que era verdade. Era uma das verdades que meu pai me disse.
Cheguei à casa, abri as janelas do mundo e vi a terra estendida sobre os vales. Os pinheiros que batalhavam de forma quieta com o vento, com os pássaros, com os eucaliptos que roubavam as chuvas santas de Novembro.
Em Novembro tudo é santo.
Pousei os meus pobre despojos e fui ver as lajes. Novembro é tempo de granito, de mármores, de bronzes e ferros fundidos. Novembro é tempo da terra barrenta ferida pelo ferro e pau dos homens. Novembro é tempo do sangue parado nos canos, do escuro nos panos e da minha avó nas rezas infinitas pelas almas que ninguém vê ou conhece.
Mal passei os cedros altos e os portões trabalhados com querubins entristecidos quanto mães sem filhos estremeci. Não estava frio, o Outono ia ameno e completo.  Umas chuvas espaçadas, uns ares mais frescos e uns dias menos longos que convidavam à lã escondida nos armários.
Iniciei o percurso curioso da contemplação dos tempos. As fotos similares em tons similares e fins similares. As palavras repetidas dos queridos, dos familiares, dos amigos e outros. A panóplia dos círios suplicantes ou moribundos de tão “tradicionais”.
Os cemitérios são lugres de culto regular, é o inferno e o céu na boca e moradia futura na mente.
Por onde morre o peixe então?
(responda a gente que pensa)
No périplo curioso das vidas passadas vi uma laje de vermelha.
Vermelha sangue.
Vermelha  vida.
Vermelha amor.
Em letras brancas de tinta um poema sem autor
(o texto em sentimento. a vida em texto. sente-se em texto)
As palavras em métrica irregular e louca, como se tudo lhe fugisse na boca e o sentir arrombasse a certeza da lógica anciã.
Era um poema lindo, sentido, desejoso...
Era um texto de saudade, graça, felicidade!
No peito senti uma chave antiga rodando e o céu cinza me brindou com umas gotas de chuva. Chorei uma lágrima de encontro e saí dali.
Fui ao povoado e vi o marco velho. Tirei um postal duma viagem antiga e escrevi.
Deixei ao marco o trabalho da entrega antiga.
Vou voltar a ter-te amor
(soube então)
Comentários
0 Comentários

0 comentários: