Há dias num confesso de esquina, uma menina dizia:
"Fui tão pequena! Fui tudo antes disto ... "
Sinceramente não sei se seria bem uma menina,
melhor,
menina era.
Criancinha tudo tem por aí,
tudo,
tudo sem escolha.
Corria o momento da graça, no instante estático duma passagem apressada
(semi-atraso. disfarçado de sorriso. umas voltas circulares de aula dentro das grades)
onde pouco importava o trajecto.
"Fui tão pequena ..."
E repetia, repetia, repetia. Dizia eternamente esta verdade escondida de querer avançar sem perceber bem. Um dia atrás, um dia à frente ...
"dia? dia é quando me deito e passado dois segundos é dia"
E a linha temporal estendida num banco de madeira, pernas de ferro castanho
(talvez imitando madeira. não sei. imitando decididamente!)
Círculos projectados numa tela tutorial e um burburinho de sons misturados
- sabes ... ontem saí
- sabes ... sou tão linda
- sabes ... vi aquele e aquela, vi
( eu que não me interessa nada daquilo e quero perceber a menina. pequena. fui pequena)
"é estanho como falamos dentro da cabeça. a nossa voz ali a falar. com que raio falamos nós?"
e isto tudo um puzzle incerto.
o desejo antigo, a ânsia nova
e nenhuma personagem porque tudo estendido
ESTENDIDO ... como o tempo ... ela pequenina e a brincar
E descobrir que somos tão sós que queremos abraços eternos. Um braço colado a cada poro, um som interior que a proximidade revela
- a tua barriga fala. tão giro!
e uma interrogação de futuro:
Serei feliz?
Já fui tudo?
Quando vou cair?
Decididamente, há dias reuniram-se as vozes escondidas num beco, insignificante, e fizeram um julgamento sobre o tempo. Tudo aquilo era uma encenação, diziam-se palavras trabalhadas em forma de lei
(artigo de tal, número de tal: não se mate as borboletas porque elas são muito lindas)
que contavam o infinito de cada um em datas.
(morreu em dia de tal.
coitado. por uma incerteza da sorte. ficou-se a sombra do velório repetido anualmente em dias a determinar.
prazo: até que os filhos se esqueçam e os netos engrandeçam pensando que a eternidade é deles.
que mentira tudo isto.)
Fiquei alertado e alterado por tal teatro macabro e fui correndo para a certeza diária. Pensei, como sempre se pensa, na casa futura, com um jarro de jarros lindos à entrada. As paredes com cores vivas, menos a cozinha, as cozinhas são lugares sóbrios e modernos. São salas de operação onde se praticam actos salvadores e letais.
Um quarto de cama comprida onde a coberta, de cor aceitável, realce os belos tapetes que chamam a tudo conforto e refúgio. Uma sala de banho onde se realcem as louças quadradas, minimalistas como manda a moda
(a moda. no sonho. manda muito)
e no fundo, uma sofá colorido acompanhado de livros e discos complete o quadro. Sim, porque isto é um quadro: estático, limitado e inglório. Programamos tantas certezas e temos tantas mudanças!
E tudo isto naquela conversa de beco: "menina ... fui tudo".
Há tempos crescei e o tempo mentiu.
Bem, como se diz isto ... Acordei numa montra de indecisões infinitas, porque o tempo escasseia e a vontade abunda. E a vida muito sozinha, muito mesmo. Como as velhinhas que andam de negro sempre. Aquele perpétuo escuro que lhes disfarça os silêncios, os sorrisos e as manhas de dizerem histórias por gestos silenciosos.
Depois a visão ampliou-se e viu lá longe um sol outonal muito brando. Num beco a imagem clara das brincadeiras sem brinquedo, dos mistérios abafados em sons imperceptíveis ao ouvido adulto, e os solavancos do caminho imenso de casa à escola.
Numa esquina um espelho ...
Numa esquina, de esguelha, um pedinte que percorria a refeição abundante que deitamos fora ...
Numa esquina a certeza que cresci e tudo mudou.
Sabem como é, há por aí pessoas como eu em sinais secretos.
Agora vou dormir
... talvez eu seja eterno ...
certamente NÃO!