Sorvendo o ar húmido da noite que começava, via as luzes espalhadas pelo vale deitado diante de si. Ia chover de manhã, tinha a certeza que ia chover de manhã. Sentia um vento vindo de longe que lhe levantava os pelos e lembrava os dias de defuntos. Sempre tivera frio diante dos mortos.
Tinha-se tornado médico porque era inteligente, mas vira mais mortos que vivos. Ossos do ofício. Ou melhor, ossos dele numa caixa em mogno polido. Esperanças encerradas por rezas estranhas.
(nuca rezara na vida)
E o felizes para sempre escondido num monte escuro onde vultos fazem actos imorais.
No hospital diziam que era lindo, jovem e interessante, mas ele desprezava o hospital. Lá era o local dos mortos e da derrota eterna. Preferia os montes escuros onde encostava o carro e esperava o ímpeto biológico de outros. Sabiam-lhe mais as invectivas escondidas entre vidros embaciados, do que as injecções ministradas à dor da gente certa.
Tinha horror ao "Dr." para cima e para baixo. E ele sem nome. Melhor, ele só com nome numa pedra linda que o dinheiro pode pagar. Por dentro um bocado de mogno polido onde vai um mundo perdido. Caixa infame onde termina o ar e entra a terra.
Levava um cigarro à boca
(prego no caixão)
e a cidade testemunha. Corrupiavam uns carros lá em baixo, gente que vem da noite ou para ela vai. Talvez gente da noite. Para ser certo, gente! Era linda a cidade à noite. Mastigava as magoas do dia elevando um saco do lixo, apagando um candeeiro duma ruela, ou permitindo um beijo secreto a amantes proibidos.
(os amantes morreram. os amantes ficaram presos pelo corpo. os amantes morreram)
Sobem as nuvens de fumo afastando o húmido do ar
(prego no caixão)
e a solidão presa nos lábios. Se acreditasse desejaria um beijo,
(o amor morreu. caiam as palavras e a dor. o amor morreu)
uma carícia e um pranto por ele. Um pranto romântico e desesperado.
(não acredita)
A vida fez dele um descrente profundo. Maleita que não sabia a cura, valera-lhe de pouco a medicina e a farmácia do bairro. A descrença encarnara um tumor profundo que lhe começou nos olhos e comeu a esperança. Um dia chegaria ao coração, seria o seu fim e a sua vitória.
Não haveria ninguém mais.
Melhor assim.
Apagou o cigarro, fitou a cidade de novo, olhou em volta. Não viria nenhum corpo hoje.
(melhor assim)
Despediu-se da cidade e deixou o monte.
Uma coruja piava a defunto.
Amanhã vai chover! - diz o vento.