Peguei no telefone e o som intermitente da possibilidade.
As mulheres andando com carros de bebé e os pobres pedindo na rua. Nós de mão dada falando do futuro, desejando a felicidade mútua e acumulada em filhos, em casas e sorrisos de noite de Verão.
Lembro os teus olhos húmidos e sábios, entusiastas e cheios de tudo.
Lembro a tua voz excitada, os teus comentários cómicos e as tuas fúrias revolucionárias.
Lembro de ti ... não passa um dia sem te ter aqui no peito. Não passa um dia e o vazio lá.
O telefone em compassos exactos, preciso e certos. O meu coração normal. Chovia e o trabalho tinha sido horrível, parecia um desejo cósmico de me levantarem a fervura. Tinha chegado a casa e tomado um banho quente ao som da rádio. O locutor, esse ser sem cara, rindo e falando duma vida excitante, duma vida inexistente (de certeza!!!).
Foi quando vestia uma roupa caseira, já desbotada e cansada, que vi o código encriptado do destino, esse malvado mentiroso que nos falam para nos enganar. Li as palavras corriqueiras sem a expressão dum pulso forte ou velho, palavras electricamente iluminadas de preto ... como detesto a tecnologia!!!
Atendeu uma voz desconhecida
(a vida feita de estranhos. os nossos longe. a vida a abarrotar de estranhos)
e o medo entrando pela frincha da porta.
Ficaste numa cama e a tua mão fria ... a tua mão fria e os teus olhos apagados por tanto verem.
A voz continuava e eu esperando uma partida,
(ai não morreu, foi a brincar, a morte também brinca, a morte não mata gente que se ama, a morte é só para os outros)
uma brincadeira inocente de meter susto.
"Desculpe mas faleceu ..." - Faleceste! Meu Deus, que injustiça! Como podes ter falecido? Isso é para os eufemistas, mentirosos, enganadores e cobardes!
("minha senhora tem a certeza? tem a certeza? como foi isso? não ... deve ser engano!")
A voz da ladainha treinada na escola dos cadáveres comuns, a voz treinada em ver a morte como parte de tudo, a voz derrotada de quem quis ser Deus e perdeu.
Já agora, onde Deus? ONDE!!!
("doente? não sabia ... não pode ser verdade! como se vai para aí?)
Acabei ficando estático na incapacidade de abarcar a história que corre. Ela correndo pela rua onde gente ri ... são mães felizes com bebés ... são amantes ... são pedintes ... é o mundo ...
nunca os mortos!
(com saudade daqueles que não conheci. com saudade ...)