Nunca te disse que chove pouco desde uns anos para cá. Misturaram-se lá em cima umas forças, uns poderios, uns mistos escondidos que ninguém percebe, e, por isso, deixou de chover.
Dizem que foi uma meninita sozinha que se finou ...
não acredito!
Desde sempre que vejo a casa do vizinho, lá do outro lado da estrada, e continua a aparecer a pequenita com os laços antigos, calçada de meias de cor e riscas lindas,
... mesmo lindas ...
saltando e pulando.
"Não se passa fome" - amen!
O carrito estacionado cá fora num misto de estátua e mutação. O gato preto, à noite,
... não nos enganemos, à noite ...
continua a ronronar nervosamente por cima do motor quente e a relva
... iluminada com um corredor de seixos ...
é ainda um tapete verde impecavelmente tratado e adorado.
E agora dizes tu,
"Que tem isso a ver com a chuva?"
E eu digo:
"Cala-te!"
Já não se deixam o velhos divagar. Nem tudo tem fim ou início corrido.
Introdução, desenvolvimento, conclusão ... tretas.
Isto é tudo em camadas. Vejam as árvores e aprendam. Aquele gato escuro nos ramos, abanando o braço traseiro distraidamente vendo a menina que salta.
Porque salta ela? (podes perguntar, isso já deixo!)
Nunca soube ...
Sei que não tem chovido, ou melhor, tem chovido substancialmente
(como dizem os políticos - substancialmente - grande esta paródia de letras!)
pouco desde uns anos para cá.
Passeiam-se umas nuvens em forma de gato, pássaro, pingarelho cómico da bancada dos feirantes imigrantes escuros. Mas chuva, tá quieto!
Talvez o tempo amoleça esta dureza imensa que temos. Vem a chuva e musgo, musgo na pedra. Cobrindo a certeza e dando-lhe forma,
dúvida,
ligeireza,
fugacidade.
Os meninos no recreio saltando atrás da bola de trapos
(sabes o que são trapos? bahhhhhh. sabes lá alguma treta!)
e as divas correndo os pés num desenho de giz.
Branco.
(branco. percebes branco? tás aí?)
A menina saltando no andar de cima da casa, os laços a saltar, o louro estupefaciente que nos levava ao recreio verde.
Era uma casa com luz porque o pai trabalhava para o Duce português. Era um respeito ver o carro com gatos e a imagem, inteira porque com sombra, passar diante de nós.
"Pirem-se !!!"
E nós corríamos, ai não corríamos!
um dia a rapariga olhou para mim (ponto)
foi minha mulher (ponto)
nasceste com dinheiro (ponto)
fiquei velho (ponto)
Nos anos em que foste para a universidade estrangeira, cara e linda. Bem linda! A tua mãe falava da possibilidade de tratarmos duma viagem conjunta. Nunca fui muito nessa conversa. Tinha umas couves às escondidas no cu de judas donde o dinheiro tradicional dos portugueses me desenterrou e tinha medo das geadas que secam tudo.
Ela insistiu e lá fomos a Paris. A tua mãe sabia muito. Saltava sempre nos quadradinhos escuros da calçada, como se pisar calçada escura fosse crime.
Ela sabia muito de leis ... talvez fosse.
Como dizia ela " sempre detestei ter pernas só. não achas que nos deviam dar asas?"
Eu achava, mas era em silêncio. Fala-se pouco dessas coisas de sonhar entre gente de taberna ... sempre fui gente de taberna.
Mas, lá fomos a Paris ver um rio grande, pontes e uns rapazes de roupa estranha que falavam com rrr carregado. Ela gostou bastante dos parques, dos arcos
(nunca vi cidade com tanta curva!)
e dos lugares da cultura. Eu ia feito peso necessário que ela arrastava com doçura.
"Não achas lindo aqueles pontos todos?" ... "Silêncio" ... "Eu sei que achas amor ... é mesmo lindo".
Até era, era mesmo lindo!
agora vou dormir (ponto)
vê se cresces e casas (ponto)
estou farto de te ver só e tão rico (ponto)
amo-te.
- Sr. Doutor quanto dura?
- Por este andar já tem sorte se passar a noite.
...
- Coitado. Sempre foi um inculto. Nunca nos demos muito bem. Fomos sempre de mundos opostos. Sabe, filhos nunca vão lá muito com os pais, mais se forem campónios.
- Eu sei. O meu pai é um triste e eu sou médico. É constrangedor, mas eles acabam por morrer e, lá no fundo, mentimos que os detestávamos.
...
- Não acredito.
- Acredite. Ainda é novo.
Young blood, young bone. Old ghosts go home.
E lá se vendeu a casa.
Por fim, lá choveu.