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Noite e Chopin




A noite é como um nocturno de Chopin.
Sentir aquele silêncio melancólico. Aquele arrepio melodioso vindo do vento.

Um dia, o meu Pai saiu do trabalho de madrugada e fomos todos para a praia. Era Agosto. Vestimo-nos rápido porque ele podia mudar o plano e ir dormir.

A noite é a ideia de se sentir no seu cantinho. De parar perante sí, tirar a armadura e ser-se o que se é.
A noite é ver cada ponto luminoso na terra e pensar a infinidade de pessoas, de vidas, de histórias, de idas à praia em Agosto
   (mas não como nós fomos. nós fomos às 7. vestimos-nos rápido porque o carro podia ficar por casa)

E lá saímos, todos alegres para o mar ver as ondas, apanhar as conchas, esperar pelas pocinhas de água. Sim, a minha mãe só vai ao mar na maré vaza. Tem-lhe muito medo. É grande demais.
Talvez tinhámos comido coelho vindo em tachos e arcas (o meu Pai adora coelho).
Eu era pequeno, e o ritual da praia era algo sagrado, moroso e muito complexo. Eram os sacos, as mantas, as almofadas, a barraca, as cartas,os cremes...
Para mim bastavam os gelados, os castelos
   (castelos e fadas, monstros e bruxos. coisas de livros e de reis)
e as pocinhas.
No fim do dia, arrumar os sacos e as arcas. Tratar do lixo (a minha mãe sempre nos quis muito limpinhos), correr atrás das gaivotas, e ver o pôr do sol.
   (e quando perdemos a chave? horas de frio. nós com cobertores, e mantas que vinham nos sacos, mais as  arcas. ali  a ligar de cabines. o telemóvel ainda estava para vir. ai, isto é tão velho)

A noite é só. Mesmo que falem conosco.
Mesmo no café com amigos, ou sentados a ver a chuva cair no meio de fumos. Somos tão sós quando a luz vai!!
Ouvimos as palavras, todas certinhas. Com assentos agudos e graves, às vezes caprichosamente esdrúxulos. Encarreiradas em discurso coerentes sobre o passado, sobre a casa que está lá, ou sonho que se tinha e já não se tem.
E aqueles verbos, todos certos e obedientes à gramática, ficam pelo ar. Somos sós à noite, de que vale que falem? Não ouvimos! Pensamos na melodia que queremos ouvir, no sonho que ela esconde ou a mágoa que ela liberta.
Aquele clarinete ... aquela flauta ... um violino ... um piano.

Ai! A noite é um nocturno de Chopin, cheio de melodia. Preenchido com os ritmos da praia, ao jeito de valsa elaborada toda ela complexa. É um nocturno de vozes, que falam ao nosso silêncio desejoso de ouvir a chuva.

A noite:
... é a memória de uma praia ...
... uma conversa num carro ...
... um fado cheio de medo ...
... é uma insónia ...
... é um carro que avança na escuridão ...
... é uma fuga nua no meio da raiva ...
... é a solidão ...
... é tentar esquecer ...
... é ver o tempo correr ...
... é
um nocturno de Chopin, até morrer.
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